Quem vê praia lotada, não vê transporte público

João Luis Pereira, Morador de Sepetiba, fundador e presidente do Centro Cultural Çape-Typa e linha de frente contra o covid pela União Coletiva pela Zona Oeste
Foto: Acervo pessoal Day Medeiros

Era 5 de junho 2020, uma sexta-feira, e o Governo do Estado do Rio de Janeiro iniciou intempestivamente o processo de flexibilização da quarentena. No primeiro dia útil subsequente (segunda, 8/6), as barreiras restritivas existentes em 15 estações dos trens da SuperVia foram removidas e os trabalhadores periféricos receberam o primeiro golpe da concessionária nesse período de pandemia: a interligação dos ramais Santa Cruz e Deodoro. Os moradores da Zona Oeste, principalmente os moradores da AP 5.3, perderam o trem expresso, que é o transporte de maior mobilidade entre as regiões do Rio: agora temos mais 11 paradas em nosso longo caminho até o Centro e para voltar para casa.

Infelizmente, a história não parou por aí e em julho o presidente da empresa apontou para a possibilidade de paralisação dos serviços caso não houvesse apoio via aporte financeiro pelo governo estadual ou federal. A paralisação não se concretizou, mas em 5 de novembro a SuperVia aplicou o segundo golpe nas trabalhadoras e trabalhadores: uma “adequação da grade horária à atual demanda reduzida de passageiros”, ou seja, uma drástica redução do número de trens em circulação.

Mas e o que a praia tem a ver com tudo isso? O “novo normal” (odeio esse termo) impôs a quem tem um grau mínimo de consciência sanitária, um comportamento policialesco com relação ao cumprimento do isolamento social. Aqueles descolados da realidade material e das dificuldades de nossas favelas e subúrbios, que durante a pandemia não tiveram nenhum tipo de melhoria que possibilitasse uma viagem segura, manifestam um comportamento preconceituoso e raso, culpando pelo avanço da pandemia em nossa cidade o pobre que não pôde, em momento algum da pandemia, de fato fazer uma quarentena minimamente digna e rígida e que, dentro dessa realidade, não deixou de ocupar o último espaço de lazer acessível aos pobres em nossa cidade: as praias. Sim, sabemos que seria importante o fechamento das praias para conter o contágio. Mas não se pode fechar os olhos para o pobre que está se espremendo dentro de trens, metrôs, ônibus e BRT lotados para servir ao eixo centro-zona sul.

Foto: Acervo pessoal Fábio Araujo

Uma ação popular, movida com amplo apoio de moradoras e moradores da Zona Oeste contra a integração dos ramais Santa Cruz e Deodoro está parada há mais de cinco meses e os trens seguem lotados, todos os dias e horários de pico, apesar das aglomerações e a falta de fiscalização do uso de máscaras nos trens serem responsabilidade da SuperVia.

Vale se questionar sobre onde está o Estado, que em momento algum da pandemia interviu de forma minimamente satisfatória para garantir não apenas uma possibilidade de quarentena para todos nós, mas também um retorno seguro às atividades do cotidiano, o que preveniria o aumento dos casos e óbitos por Covid.

Podemos nos cegar pelo moralismo hipócrita de quem pôde cumprir uma quarentena com o mínimo de conforto e segurança e culpar o povo periférico pelo avanço da pandemia, ignorando a ausência de intervenções de políticas públicas e privadas nas medidas de saúde e segurança que toda a população deveria ter garantidas.

Esta gostando do conteúdo? Compartilhe

Veja Também