O significado de ilha, em sua definição geográfica, conforme o dicionário Michaelis, é: “porção de terra com área não tão grande quanto um continente e cercada de água por todos os lados”. Ilha também possui outros significados, tais como: “Tudo aquilo que se assemelha a uma ilha por estar isolado ou afastado do mundo que o cerca”. Apesar de, geograficamente falando, Itaoca ser considerada uma ilha, uma vez que o que a liga ao continente é uma pequena ponte chamada “Ponte do Rodízio”, esta última foi aterrada, fazendo com que a “ilha” se conecte ao continente de forma plena.
Paola Figueiredo dos Santos Souza, em sua dissertação de mestrado (2011), intitulada “Os últimos dias da lixeira: ética ambiental e seus reflexos sobre os catadores de lixo”, menciona o texto produzido sobre um ensaio fotográfico do autor Marcos Veríssimo, antropólogo com longa trajetória de pesquisa sobre a ilha de Itaoca, chamado “A Poética do Abandono”, que levanta um debate sobre a categoria sociológica abandono, através da discussão sobre a ilha. Veríssimo deixa, assim, o seu olhar, muito inspirador para esta pesquisa: “O abandono da Ilha de Itaoca é social, político, ambiental, além de ser também um abandono em relação ao seu próprio passado – quando o lixo ainda não impregnava a paisagem […] Retratar o abandono é valorizá-lo em sua condição de pano de fundo sobre o qual aparecerá a criação e recriação do próprio mundo por parte dessas pessoas, não apenas abandonadas à própria sorte, mas antes de tudo refinadas em suas explicações e estratégias para articular um domínio da situação adversa brevemente descrita acima”. (VERÍSSIMO, 2006, p.55).
Há 13 anos ocorreu um dos maiores conflitos envolvendo racismo ambiental e saúde no município de São Gonçalo: a desativação do lixão de Itaoca. O lixão existia naquele território desde a década de 1970, contudo, em 2005, a Prefeitura Municipal de São Gonçalo transferiu a gestão do Aterro Sanitário de Itaoca para uma empresa privada, a Haztec. No ano de 2010, surge a Política Nacional de Resíduos Sólidos, pela Lei n° 12.305, de 2 de agosto, como resultado da alteração da Lei n° 9.605, de fevereiro de 2008. Essa legislação previu a extinção dos antigos vazadouros de lixo e a recuperação de suas áreas. Por essa razão, em 2012, o lixão de Itaoca foi desativado.
Por causa da existência do lixão, no passado houve uma migração de pessoas para viver naquele local por conta da coleta de lixo, uma das poucas oportunidades em meio ao crescente índice de desemprego. Quando o lixão foi desativado, essas famílias ficaram isoladas, visto que o local não foi construído com o devido planejamento urbano, com saneamento básico, abastecimento de água, dentre outros serviços básicos.
O Plano Municipal de Saneamento Básico do Município de São Gonçalo, apresentado em audiência pública no ano de 2015, indicou, através de seu relatório final, um planejamento para recuperação da área onde era localizado o antigo lixão, inclusive, foram apresentadas metas de monitoramento do local. O relatório pontuou a dificuldade de adentrar no local para realizar o monitoramento previsto em virtude da presença do tráfico de drogas.
A única mangueira que atende cerca de 60 casas e que percorre todo o antigo lixão e para em esgoto a céu aberto. Foto: Laura Torre
Hoje, em 2023, a caminho do antigo lixão de Itaoca, é possível observar o contraste e a precariedade das políticas públicas que vão se dissipando. O esgotamento sanitário inexiste, as muitas residências que ainda não possuem água potável e as famílias que não têm banheiros e fogões em suas casas são cenários corriqueiros na localidade.
Em março de 2023, através de uma pesquisa realizada pelo Observatório “De olho em Itaoca”, coordenada pelo Espaço Gaia, um morador local relatou que na década de 1990 houve uma grande obra da Prefeitura, que colocou tubulações novas em todo o território, porém, essas tubulações nunca foram ligadas. O “abastecimento” de água é feito através de uma canaleta em meio ao esgoto a céu aberto, que atravessa o que já foi o lixão, e onde as famílias enchem seus baldes, galões e garrafas para tomar banho, lavar roupas, cozinhar e para consumo próprio.
Conforme estudo realizado pelo Boletim Lua Nova de 2022 (revista nº117): “a falta de água nos bairros de baixa renda da cidade do Rio de Janeiro é um problema de longa duração histórica que expõe processos de reprodução da pobreza, por meio dos marcadores sociais da diferença de classe, raça e gênero. Tais desafios atrelam a responsabilidade de prover água com a provisão de cuidado das casas e das pessoas […]”.
Em São Gonçalo, 108.974 pessoas estão sem acesso à água, isto é, 9,9% da população. Além disso, no ano de 2021, o município apresentou 75 casos de internações totais por doenças de veiculação hídrica, conforme dados fornecidos pelo DATASUS.
Entrada da casa de dona Maria, uma das moradoras do antigo lixão Foto: Laura Torres
O antigo lixão de Itaoca existe e resiste
Em 1982, Dr. Benjamin Chavis, líder afro-americano de direitos civis, descreveu o racismo ambiental como a discriminação racial na elaboração de políticas ambientais, a aplicação de regulamentos e leis, o direcionamento deliberado de comunidades racializadas para instalações de resíduos tóxicos, a sanção oficial da presença de venenos e poluentes que representam uma ameaça à vida em nossas comunidades e a história da exclusão de pessoas racializadas dos espaços de liderança nos movimentos ecológicos.
Como sugere Marina Marçal, em entrevista para o GIFE, “esse conceito aponta para a divisão desigual do bônus e do ônus do “desenvolvimento” no modelo de produção capitalista, em que as populações negras, indígenas, latinas e minorias sociais costumam ser majoritariamente afetadas pela degradação ambiental – enchentes, poluição do ar, proximidade à destinação de resíduos sólidos e/ou tóxicos, entre outros (…)”.
A violência contra os corpos que gestam
A violência obstétrica atinge diretamente as mulheres, sobretudo mulheres negras, e pode ocorrer durante a gestação, parto e pós-parto. É o desrespeito à mulher, à sua autonomia, ao seu corpo e aos seus processos reprodutivos, podendo manifestar-se por meio de violência verbal, física ou sexual, e pela adoção de intervenções e procedimentos desnecessários e/ou sem evidências científicas, assim como através da negligência com a saúde e o bem-estar da pessoa gestante. Ela afeta negativamente a qualidade de vida das mulheres, ocasionando abalos emocionais, traumas, depressão, dificuldades na vida sexual etc.
Quando mencionamos a violência que ocorre nos corpos femininos que habitam em Itaoca, falamos da influência da falta de abastecimento de água, do contato direto com o esgoto a céu aberto, das casas extremamente quentes e sem circulação de ar, da falta de mobilidade, visto que o transporte público é longe da localidade, da coleta de lixo que é inexistente, e da insegurança alimentar, que tem se tornado cada vez mais forte dentro da localidade, fazendo com que muitas das gestantes acompanhadas pelo Espaço Gaia tenham anemia profunda, já que a alimentação é garantida através de ações da sociedade civil organizada e apenas com alimentos secos, sem que haja uma variedade de frutas, verduras e legumes, como é necessário para a saúde e o bem estar de qualquer pessoa. São muitos os fatores que atravessam os corpos de mulheres que gestam e o racismo ambiental é um dos que colocam a vida dessas mulheres e de seus filhos em risco, visto que a falta de acesso a políticas públicas adequadas de saúde faz com que elas sejam mais afetadas (antes, durante e após o parto).
E quem são essas mulheres?
Maiara Aparecida, 24 anos, e moradora do antigo lixão de Itaoca, relatou que seus pais trabalhavam no antigo lixão e que foi através dele que ela e seus irmãos tiveram o mínimo dentro de casa. Com a desativação do mesmo, cerca de 700 pessoas que viviam trabalhando com a coleta dentro da localidade perderam sua única fonte de renda. Muitas, até hoje, esperam a resposta da Prefeitura quanto ao pagamento que foi mencionado, mas nunca repassado. A jovem também contou sobre as dificuldades que atravessam seu corpo: “Da minha casa até o ponto de ônibus mais perto são mais de 15 minutos andando, o posto de saúde perto daqui não tem vacina, e ele, que fica “perto”, está uns 30 minutos andando, ou senão andamos 15 minutos até do lado de fora e pegamos um ônibus, que é uns cinco minutos até o posto. A escola é a mesma coisa, a única coisa próxima de nós é a creche, mas ela sempre está sem água e comida”, encerra ela.