Foram muitos os erros que levaram ao fracasso do programa de pacificação das Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs) nas favelas do Rio de Janeiro¹. Destacam-se a falta de planejamento da política pública, que levou a um grau exacerbado de improvisação, falta de treinamento adequado e de recursos que garantissem sua sustentabilidade, além de sua subordinação aos objetivos eleitoreiros dos políticos e aos interesses de lucratividade do mercado. A ocupação militar representou a instauração do estado de exceção nestes territórios, tendo sido identificada como pacificação apenas pela mídia e pelas classes médias e altas, ignorando os complexos problemas na raiz do crescimento da violência urbana.
Sem dúvida, o maior erro foi ter procurado mobilizar a população, organização e lideranças das favelas com o intuito de controlá-las, discipliná-las, subalternizá-las, fragilizá-las frente às ameaças de desforra pelos traficantes e milicianos. O começo de um novo programa que repete os mesmos erros mostra que os políticos não aprendem com os erros das políticas públicas. Mas o mesmo não se pode dizer da população das favelas, cuja frustração com os pífios resultados das UPPs tem sido um combustível para aumentar a consciência em relação às suas demandas.
¹ Esta é uma versão reduzida de um artigo publicado originalmente no site Outras Palavras, em 24/01/2022.
Participação Pacificada
A implementação das Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs) como parte da política de segurança pública do estado do Rio de Janeiro, a partir de 2009, pretendeu apresentar em seu escopo um componente de mobilização social, promoção do desenvolvimento local, redução das desigualdades sociais e ampliação dos direitos da cidadania por meio dos programas UPP Social e Territórios da Paz. Mesmo sendo uma política pública fortemente vinculada aos interesses empresariais, a inclusão da participação social como cerne da proposta de segurança pública singularizou essa política.
Compreender a participação requer, primeiramente, o exercício de definir um conceito tão fluido, frequentemente nominado como participação social, popular ou cidadã. Ainda que a noção de participação seja constitutiva da teoria democrática, seu significado varia grandemente, o que dá lugar a diferentes traduções institucionais. Estas variações, ao longo do tempo e do espaço, dão forma à arquitetura da participação em cada país. Para a análise das políticas públicas assumimos que a participação trata da relação entre Estado e sociedade civil, corporificada em estruturas institucionais
que permitem a interação entre agentes governamentais e usuários, individualmente ou como membros de organizações da sociedade civil. As instituições participativas são canais ou espaços criados com esse intuito, mobilizados pelo poder público ou pela sociedade civil, nos quais as variações na participação dependem de inúmeros outros fatores. Fundamentalmente, o que diferencia os vários tipos de participação é sua posição em relação ao eixo que vai da manipulação ao compartilhamento do poder.
A articulação de diferentes atores, públicos e privados surgiu naquele contexto como imprescindível ao aumento da efetividade e da eficácia da ação das UPPs. Por isso, a política de pacificação envolveu um componente de articulação interinstitucional com participaçãode distintos atores governamentais e não governamentais, e outro componente que se referiu à ampla mobilização de moradores e setores empresariais e filantrópicos, vistos como prioritários para o sucesso do programa. O grande apoio dos meios de comunicação às ações do programa e o envolvimento de atores da elite empresarial e intelectual também foram um traço distintivo dessa política.
A implantação das UPPs nos territórios foi seguida de um conjunto de transformações urbanas e habitacionais, financiadas em convênios do governo estadual com o governo federal (como o Programa de Aceleração do Crescimento – PAC das Favelas). Outros programas dos governos regional e local também se dedicaram à melhoria da infraestrutura nas favelas, sendo responsáveis pelas melhorias habitacionais, de saneamento básico e da mobilidade, com a abertura de ruas, pavimentação, construção de teleféricos e bondinhos – boa parte destas ações também adotaram estratégias de participação. É muito frequente encontrarmos, no campo das políticas sociais, esse efeito de metástase institucional, onde a duplicação de funções em cascata revela fragilidades e baixa prioridade, apesar de ser apregoado justamente o contrário, como justificativa para a institucionalização de programas superpostos.
Contudo, do ponto de vista das populações atendidas pelas UPPs, evidências empíricas em diferentes comunidades indicam uma diversidade de significados atribuídos à participação, bem como a coexistência de contradições entre o modelo preconizado de governança participativa e sua subordinação a um processo de militarização da participação popular.
Participação: múltiplos significados, poucos poderes
Observaram-se diferentes modos de participação nesse processo, seja como aproximação, negociação constante, enfrentamento direto e construção de vínculos afetivos e interpessoais, entre outros formatos. O repertório de interações possíveis entre agentes públicos e moradores é variado, incluindo o controle e coerção, convencimento e transmissão de normas de boa conduta, passando por alianças e identificações entre gestores sociais e grupos comunitários. Esses últimos, por sua vez, assumem múltiplas estratégias que envolvem ações de resistência, adesão, clientela, barganha, legitimação, entre outras formas de adequação ao novo quadro institucional inaugurado pela política de pacificação. O que esperar das UPP recauchutadas lançadas pelo Governo do Estado em ano eleitoral de forma experimental em dois territórios? Enquanto as lideranças locais reclamam que não foram ouvidas, moradores denunciam a violência policial com prisões arbitrárias, invasões de domicílios e furtos por parte de policiais. Como acreditar que desta vez será uma participação à vera?