“Se eles lá não fazem nada, faremos tudo daqui”: A voz das favelas na luta contra a violência policial

Rachel Barros, Socióloga, educadora popular da Fase-RJ, integrante do Fórum Social de Manguinhos e pesquisadora do Cidades/UERJ
Imagem: Acervo Pessoal Rachel Barros

A luta contra a violência policial é uma bandeira histórica dos movimentos de favelas da cidade do Rio de Janeiro. Considerando que seus territórios sempre foram vistos como locais da pobreza, das classes perigosas e germe da criminalidade, o histórico de atuação violenta das forças de segurança se justifica. Soma-se a isso o fato nada irrelevante de que a maioria da sua população é negra, uma transposição do quilombo à favela, como bem colocou o professor Andrelino Campos.

Os estigmas que pairam sobre as favelas se consolidaram em diversas políticas e programas de segurança pública. No período mais recente, dois marcos podem ser mencionados: o programa de “pacificação” e ações adotadas na gestão do então governador Wilson Witzel. O primeiro foi visto como inovação e mudança na cultura institucional das forças policiais, já que propunha um policiamento de proximidade e o diálogo com a população. Contudo, o passar dos anos mostrou que o programa era falho, pois os seus resultados na diminuição da letalidade policial foram datados e a relação de proximidade, inexistente.

Com o desgaste desse programa e o fim dos seus resultados exitosos, a segurança pública intensifica medidas extremamente opressoras e de caráter militarizado. Após a ocupação federal nas forças de segurança do Rio de Janeiro (2018), com gastos da ordem de 1,2 bilhão, o que restou foram muitos episódios de violações e mortes causadas por agentes policiais. É nesse contexto que o então governador Wilson Witzel (PSC) se elege e põe em prática um período de terror extremo nas favelas.

Não existe pena de morte no Brasil, mas as polícias do Rio de Janeiro têm desenvolvido formas cada vez mais aterrorizantes de matar: uso de helicóptero como plataforma de tiro, operações policiais que alvejam telhados de escolas e unidades de saúde, uso de atiradores de elite, chacinas, invasões de casas, tortura e execuções sumárias. Por esse motivo, em novembro de 2019, o Partido Socialista Brasileiro (PSB) propôs uma Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF). A ADPF 635, apelidada de “ADPF das Favelas” foi construída coletivamente com Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro e diferentes organizações da sociedade civil que se tornaram amicus curiae/amigos da corte, isto é, uma organização que fornece informações que ajudam o Tribunal a tomar decisões. Entre essas organizações estão Educafro, Justiça Global, Redes da Maré, Conectas Direitos Humanos, Movimento Negro Unificado, Iser, IDMJR, Coletivo Papo Reto, Coletivo Fala Akari, Rede de Comunidades e Movimento contra a Violência e as Mães de Manguinhos.

A ADPF das Favelas teve um primeiro julgamento em 17 de abril de 2020 que, dentre outras medidas, restringiu o uso de helicópteros como plataforma de tiro. Contudo, a continuidade de ações extremamente violentas durante a pandemia trouxe um agravante: a população mais vulnerável aos contágios pelo novo coronavírus continuava a sofrer com inúmeras ações violentas. Em maio de 2020, as favelas passaram por diversas situações de violência. Uma operação policial no Complexo do Alemão terminou com uma chacina em que 13 pessoas foram mortas; um jovem morreu na Cidade de Deus e outro na Providência em operações policiais que ocorreram durante a distribuição de cestas básicas; o jovem João Pedro Mattos Pinho, de apenas 14 anos de idade, morreu durante ação da polícia no complexo do Salgueiro, em São Gonçalo, após ter sua casa alvejada por 70 tiros.

Em Manguinhos, os movimentos sociais contabilizaram até o mês de maio de 2020, cinco pessoas mortas em operações policiais. Pais e mães que perdem seus empregos, famílias passam necessidade, e tudo que o Estado oferece é o poder bélico. Como afirmou o Fórum Social de Manguinhos:

“Parece que para o Estado, o vírus a ser combatido é a própria favela e seus moradores.”

Essas e outras situações de barbárie fizeram com que um grupo de organizações solicitasse ao Ministro do Supremo Tribunal Federal, Edson Fachin, relator da ADPF 635, a suspensão das operações policiais durante a pandemia. O pedido foi aceito e no dia 5 de junho as operações policiais em favelas foram oficialmente impedidas durante a pandemia. Em um mês, o número de mortes causadas operações policiais reduziu em mais de 70% – queda que acompanhou também a redução de crimes contra o patrimônio (39%) e roubo de carros (32%), segundo dados do Grupo de Estudos dos Novos Ilegalismos – GENI (2020). Apesar dos dados comprovarem os efeitos dessa medida, no final de 2020 ela passou a ser sistematicamente desrespeitada e o número de morte e casos de violência policial voltaram acrescer.

Nos dias 16 e 19 de abril de 2021, diferentes organizações de favelas puderam falar de suas lutas contra a violência policial numa audiência publica sobre a ADPF 635 no Supremo Tribunal Federal. O complexo de favelas de Manguinhos esteve representado pelos movimentos Mães de Manguinhos e Fórum Social de Manguinhos. Na fala desses dois movimentos forma expostas a importância de salvar vidas e a brutalidade das ações policiais que tem sistematicamente impedido que mulheres e jovens tenham o direito de viver. Denunciamos a morte de nossas crianças, o adoecimento físico e mental que a violência policial causa nas mulheres, as abordagens violentas sofridas por jovens, como a prática de “forjar” apreensão de traficantes, os procedimentos de invasão de casa, além dos impactos no funcionamento dos órgãos de saúde, tão necessários durante a pandemia. Também apontamos a importância dos dados da saúde para mensurar os efeitos nocivos das operações policiais na vida dos moradores de favelas.

É importante dizer que nestes dois dias de audiência, Manguinhos sofreu com episódios de operações policiais e que estas ações foram denunciadas durante a audiência. No dia 16 de abril, os relatos são de dezenas de pessoas desesperadas, correndo para todos os lados, tentando se proteger dos tiros disparados numa área com duas unidades de saúde e área de lazer. No dia 19 de abril, uma operação policial começou às 4h30 da manhã com relatos de invasões de casas.

A atuação dos movimentos sociais de favelas do Rio de Janeiro na ADPF 635 no Supremo Tribunal Federal foi um marco histórico nas formas de atuação junto ao sistema de justiça, fruto de uma articulação consolidada de organizações da sociedade civil e pesquisadores, com o protagonismo dos movimentos sociais. Mas para que esse feito ganhe efetividade no plano de redução da letalidade policial, é necessário que toda a sociedade se comprometa com este debate e apoie as medidas de redução da letalidade policial, que faça coro com as nossas vozes, que exijam respeito e dignidade nas favelas e afirmam, sobretudo, que vidas negras importam! Dedico esse texto ao nosso companheiro Gilson Alves, professor, sambista e lutador de Manguinhos, que nos deixou tão cedo. Como mestre, ele nos ensinou que a vida só vale a pena se for para que todos tenham dignidade. Seu legado segue conosco nas lutas que continuaremos a travar.

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