O ano era 2017. Com um misto de indignação, revolta e muita vontade de denunciar o absurdo da negligência com que as autoridades competentes lidavam com a mobilidade urbana e a total ausência de políticas públicas para pensar o transporte no território, iniciamos uma série de ações, em conjunto com o Movimento Passe Livre, para expor a violência sistêmica da falta transporte e o que isso ocasionava na vida dos moradores de Santa Cruz e bairros vizinhos. Começamos a nos organizar em reuniões abertas, distribuindo panfletos e lambes colados em postes e pontos de ônibus para dialogar com quem passava e tivesse interesse, somando sua indignação à nossa.
O modelo de transporte público implementado em 2012 e, é importante frisar, tendo Santa Cruz como modelo experimental (Corredor Transoeste), era a menina dos olhos da gestão da prefeitura à época. O BRT deveria atender de maneira mais rápida e eficaz a demanda do mercado e “entregar” trabalhadores no seu local de serviço. A previsão era que, um ano depois, se inaugurasse o corredor que integraria Santa Cruz à Campo Grande. Nós, moradoras e moradores, sempre assistimos com desconfiança um projeto de transporte que dá poder absoluto as concessionárias, inclusive eliminando a concorrência e retirando uma série de linhas de ônibus, apostando em linhas alimentadoras, muito mal estruturadas, que sabidamente não dariam conta do fluxo de passageiros, além do valor da passagem, sempre muito alto para o trabalhador. Não havia fiscalização. Era nítida a diferença entres as estações localizadas na Barra e as estações do outro lado do túnel. Para a Barra, a pracinha, o projeto paisagístico e bicicletário; para nós estações que não comportavam os passageiros, que não nos davam o direito de recarregar o valor que necessitávamos no bilhete único e máquinas de recarga quebradas.
Lá nos idos de 2017, já estava muito claro para nós que aquele modelo de transporte, isolado, sem transparência alguma, denunciado inclusive em CPI na câmara de vereadores, não suportaria o peso do modelo gentrificado de cidade que foi sendo desenhado e que desmoronou junto com a ideia de se construir uma cidade para gringo ver.
E a população da periferia?
Acervo: Coletivo Piracema
O BRT nasce falido, sugado pela máfia dos transportes, e fazendo com que diversas linhas de ônibus, que inclusive tinham um papel de conectar a própria Zona Oeste, desaparecessem. Foram muitas linhas!
Importante reiterar que no início do projeto, além da manutenção das linhas que integravam a extrema Zona Oeste à Barra, deveria haver a preocupação qualitativa com o transporte, visando integrar territórios, conectar diferentes modelos de transporte e ser um dos fatores de promoção ao direito à Cidade. Isso diz respeito à garantia de direitos da juventude, promovendo o acesso às instituições de ensino e espaços de cultura e lazer; garantia de direitos das mulheres, que comumente são vítimas de assédio no transporte público; garantia de direitos das trabalhadoras e o trabalhadores que não devem ser tratados como mão de obra para os lugares abastados da cidade, mas cidadãs e cidadãos plenos de direitos e que devem acessar espaços outros para além do laboral, e por último, mas não menos importante, garantir a dignidade das trabalhadoras e dos trabalhadores rodoviários.
Como chegamos a 2021?
Acervo Coletivo: Piracema
Se hoje a pandemia escancara os diversos níveis de desigualdade que a população periférica, majoritariamente negra e pobre, está submetida, o transporte é um dos elementos críticos desse cenário e que, atualmente, têm tomado os noticiários. A massa de trabalhadoras e trabalhadores amontoados no BRT é uma das faces cruéis da desigualdade que se arrasta por anos nas grandes cidades, mas que, devido a excepcionalidade do contexto pandêmico, deveria ser tratada com mais seriedade dada a gravidade de situações que as passageiras e passageiros são expostos.
Se antes já denunciávamos o “sumiço” do trocador; o alto valor da passagem; a estrutura que não suporta o número de passageiros; a péssima manutenção dos modais, tanto em relação a limpeza quanto na efetivação dos ônibus com ar-condicionado (elemento esse sempre usado pelas concessionárias de transporte para aumentar a tarifa, vale ressaltar); hoje esse cenário não só se perpetua, como está agravado.
A impossibilidade de se manter o distanciamento social no transporte público expõe o trabalhador ao vírus e ao descaso.
O cinismo e a perversidade parecem não ter limites e no caos da pandemia da Covid-19, sem previsão de um plano nacional de vacina que garanta #VacinaParaTod@s, sem leitos de UTI suficientes para as internações, parece que a vida dos passageiros não importa, segue a máxima de “salvar os CNPJ” em detrimento das vidas.
O BRT segue trabalhando com a metade da frota inicial, o trem gerido pela Supervia segue igualmente lotado até a Central do Brasil e os altos custos das passagens abocanham uma fatia importante do orçamento das famílias já tão sacrificadas. É nesse panorama, entre o ontem e o agora, quando o Brasil bate o recorde de mais de 3000 mortes em 24h, que continuamos enquanto movimento social organizado denunciando a desumanidade com que são tratados aqueles que carregam a Cidade no braço.