Uma reflexão coletiva sobre a organização dos caminhos da luta das favelas e periferias no enfrentamento dos impactos da covid-19 e das desigualdades sociais

Imagem: Portal Coronavírus Covid-19

Cenários, análises e avaliações

O cenário atual é marcado por dois principais acontecimentos: o primeiro é o aumento de casos e internações por Covid-19 no Rio de Janeiro e em vários estados e municípios do país e situação que já afeta os sistemas de saúde menos preparados para atender as demandas de leitos e enfermarias de UTIs; o segundo é a transição de governo em âmbito municipal, após a realização das eleições municipais. O desenrolar da pandemia tem sido marcado por várias temporalidades e as lutas sociais e políticas têm enfrentado o desafio de lidar de uma maneira articulada com as dimensões do tempo da reflexão, o tempo da urgência e do tempo da ação política; e com as intervenções estratégicas, emergenciais, pontuais e estruturais.

No atual momento da pandemia, tem se falado em “repique” ou “segunda onda” para se referir à expansão de casos, internações e óbitos por Covid-19.

Do ponto de vista das favelas, desde o momento inicial da pandemia, já havia a constatação da impossibilidade de os moradores e as moradoras realizarem o recomendado distanciamento físico, por diversas razões: as condições de moradia, a própria geografia das favelas, o comportamento cultural, a narrativa do negacionismo, etc.

Para além do distanciamento físico, do uso de máscaras e da higienização das mãos que, com efeito, continuam a ser as principais medidas para a contenção do contágio, observa-se, nesse momento, uma diminuição significativa das iniciativas locais de mitigação dos impactos da pandemia nas favelas. Após nove meses de pandemia, um certo cansaço se abateu sobre a própria dinâmica das iniciativas locais e as doações de alimentos, que vinham sendo uma das principais ações, arrefeceram. Paralelamente a isso vão se ampliando as dinâmicas de aglomeração com a realização de encontros, festas e eventos nas favelas.

O poder público, por sua vez, segue sem oferecer a necessária proteção para as populações vulnerabilizadas nas favelas, inclusive quanto ao cuidado com as pessoas enfermas, principalmente aquelas portadoras de doenças crônicas. Toda a discussão realizada no sentido de pressionar as várias instâncias e os vários níveis de governo a priorizar uma resposta estatal efetiva, em termos de políticas públicas para o enfrentamento dos impactos da pandemia, até o momento, não surtiu efeito. A Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro chegou a aprovar o Projeto de Lei 2920/2020, visando o desenvolvimento do Plano de Enfrentamento da Covid-19 nas Favelas com o objetivo de desenvolver ações nas áreas de saúde e assistência social. Com efeito, dada a magnitude da questão social que envolve as favelas e considerando a abrangência estadual do plano – favelas no Estado do Rio de Janeiro – o valor destinado poderá contribuir para o desenvolvimento de ações experimentais voltadas para o debate e construção de políticas públicas de enfrentamento dos impactos da pandemia nesses territórios.

No âmbito municipal, foi proposta e aprovada pela Câmara Municipal e sancionada pelo prefeito da cidade do Rio de Janeiro a lei 6.760/2020, que dispõe sobre a criação de Programa Emergencial de Combate ao Coronavírus nas Favelas e Comunidades durante a pandemia do novo coronavírus. Até o presente momento, a execução dos dois planos não se concretizou. Embora a pandemia tenha agravado a desigualdade social e, consequentemente, precarizado ainda mais as condições de vida da população vulnerabilizada residente em favelas, até a atual fase da pandemia, não houve nenhuma ação coordenada dos governos.

Logo no início da pandemia, os moradores de favelas demonstraram intensa capacidade organizativa para criar redes de solidariedade, voltadas principalmente para uma intervenção imediata em relação às urgências impostas pelo contexto sanitário, principalmente no que dizia respeito ao acesso a insumos de higiene para a proteção sanitária, como álcool e sabão, para lavar as mãos e acesso a alimentos, o que por si só evidencia a centralidade do problema da fome e do acesso à uma renda mínima, capaz de garantir direitos básicos para a manutenção da vida, como moradia e alimentação. Capacidade organizativa, esta, que vem de longa data.

O associativismo é parte da história da favela e sempre foi uma condição para sua possibilidade de existência na cidade, seja na luta contra a política de remoções de diferentes governos em diferentes momentos históricos, seja nos mutirões para autoconstrução de casas, de redes próprias de água tratada e a energia elétrica (comissões de luz), etc. Sem deixar, portanto, de reconhecer a enorme força mobilizadora que gerou a diversidade de iniciativas locais que se multiplicaram nas favelas. Essa movimentação toda enfrenta limites.

Um deles é a dificuldade de empreender ações políticas capazes de pautar o debate público com governos e sociedade sobre a cidade a partir das demandas das favelas. Outro é o de pressionar as estruturas de governo que têm se mostrado indiferentes e insensíveis ao diálogo com as favelas para que esse intercâmbio aconteça, considerando que moradores residentes em favelas representam expressiva parcela de 22% da população do município do Rio de Janeiro, distribuída entre as 1.018 favelas, conforme dados do Instituto Pereira Passos (IPP).

Ação coletiva e articulada em defesa da vida digna nas favelas

A reflexão coletiva elaborada no espaço da roda de conversa apontou para a importância dos movimentos sociais de favelas (em seus vários formatos) não perderem do horizonte político uma crítica mais contundente da ausência do poder público no enfrentamento dos efeitos da pandemia sobre a população residente em favelas. A favela enquanto questão social requer uma ação pública do governo – lógica que se aplica para os tempos antes, durante e após a pandemia. A visibilidade das condições de vida na favela que ocorreu em um dado momento foi diminuindo sua presença na agenda pública no decorrer dos meses, e, consequentemente, também enfraqueceu a capacidade dos movimentos sociais de interpelarem coletivamente as estruturas de governo em busca de uma resposta política efetiva para o enfrentamento das crises sanitária e humanitária.

Segundo a avaliação dos presentes na ocasião, o contexto de uma nova gestão da prefeitura se abre como ocasião oportuna para dialogar e cobrar do novo governo compromissos efetivos, por exemplo, com a atenção primária da saúde que vem sofrendo com o desmonte nos últimos anos. Cobrar do governo não porque um ou outro secretário tenha alguma proximidade ou sensibilidade no trato com os movimentos sociais, mas porque, afinal, se trata de uma estrutura do Estado Brasileiro, e exatamente por isso, qualquer que seja o governo, deve estar sensível a dialogar com as favelas. Afinal, a população residente em favelas e em conjuntos habitacionais que metamorfosearam-se em favelas e em periferias corresponde a um quarto da população total da cidade do Rio de Janeiro. A expansão da favela sobre a cidade, torna a questão da favela uma questão urbana com a qual a cidade precisa lidar. A questão da favela, portanto, não é uma questão restrita a este território, ela diz respeito à cidade; é uma expressão da questão urbana e seu enfrentamento requer ação coordenada, intersetorial, territorializada e com participação direta de seus moradores na formulação e gestão das diferentes políticas públicas a ela endereçadas.

É nesse sentido que – sem perder de vista sua heterogeneidade– é necessário problematizar onde esses vários territórios, que são tão diferentes entre si, se encontram. Para além da diversidade de experiências e especificidades de cada um deles – que é uma riqueza – o que é possível construir em comum? Que temas ou pontos são capazes de fomentar uma agenda comum que possa contribuir para superar a ação fragmentada e produzir pontos de convergência e incidir politicamente na nova gestão municipal?

Fragmentados cada um em seu território, os ativistas, coletivos e movimentos podem desenvolver ações locais interessantes, mas, com pouca capacidade de incidência na política municipal e também em outras esferas de governo. Os coletivos de favela, por exemplo, não foram capazes durante a eleição municipal de pautar o debate sobre urbanização de favelas. Seria a reurbanização de favelas um tema de interesse comum?

Com a pandemia, as questões sociais emergenciais e estruturais das favelas ganharam destaque. Não se trata de uma novidade – cabe destacar que a militância das favelas vem atuando e denunciando há muito tempo – mas de um contexto novo que deu visibilidade para falar da desigualdade social; do espaço entre as casas; de falta de água; da dificuldade de ser atendido nos hospitais e da espera na fila do Sisreg, o sistema que regula as vagas nos serviços de saúde do Sistema Único de Saúde; do racismo estrutural; da dificuldade ou impossibilidade de acesso à internet; da creche, da escola pública e da mãe trabalhadora e seus filhos, etc. Daí a importância de aproveitar todo o aprendizado e toda a movimentação que ocorreu até agora para desenhar alguma ação que tenha continuidade e que sistematize uma agenda comum com o objetivo de incidir politicamente.

Construir uma agenda comum para a luta política em defesa da vida digna nas favelas e periferias

Quais temas ou reivindicações poderiam produzir conexões e aproximações para estruturar uma ação coletiva em defesa da vida digna nas favelas? Emprego, renda básica e segurança alimentar? A reivindicação por operações policiais de acordo com a lei, com a decisão do Supremo Tribunal Federal e orientada pela proteção das vidas dos moradores de favelas? A luta contra remoções e pela reurbanização das favelas? A luta pelo acesso à internet de qualidade nesses territórios? A luta por acesso permanente à água, coleta de lixo, drenagem e rede de esgotamento? A luta contra a privatização dos serviços de saúde, assistência social e saneamento básico?

Considerando que a pandemia não acabou, e os números de casos, internações e óbitos encontram-se em alta, a avaliação coletiva realizada por militantes, mobilizadores e articuladores locais que participaram da roda de conversa indica que ação política das favelas deve recuperar a discussão sobre o plano emergencial já aprovado pela ALERJ e sancionado pelo governador do Estado do Rio de Janeiro para o enfrentamento dos impactos sociais da pandemia nas favelas. De acordo com o coletivo presente, se torna necessário agir para alcançar a materialização dessa lei. Nela, está previsto que o Plano seja executado através de um Comitê Gestor: assim sendo, é preciso garantir a participação popular nesse Comitê e pautar que as ações sejam realizadas de maneira articulada com as universidades e entre as diferentes secretarias, instâncias e ações de governo, na medida em que não seria possível pensar os problemas da cidade senão de forma intersetorial.

As áreas de favelas com maiores taxas de contaminação e aquelas consideradas áreas de risco – considerando a histórica ação das chuvas de verão causando enchentes, deslizamentos, destruição de moradias e mortes -, devem estar no horizonte de prioridade das ações de enfrentamento à pandemia nessas localidades, orientadas pelos valores de proteção à vida e à moradia digna. De modo que, para além da dimensão emergencial de mitigação dos impactos da Covid-19, seja possível aproveitar o momento para pautar as questões estruturais relacionadas à negação dos direitos básicos da população residente em favelas, na perspectiva das políticas públicas saudáveis.

A reflexão do grupo apontou também para a necessidade de se rediscutir e redesenhar as cartografias políticas e administrativas da cidade considerando a heterogeneidade e as diferenças entre as favelas e periferias urbanas do Rio de Janeiro. Nessas redefinições, pareceu importante aos presentes no debate, destacar a questão da Zona Oeste e o lugar que ela ocupa no mapa político da cidade. Isso, não apenas pela presença das milícias, mas também pelo histórico de uma prática política conservadora que age sem compromisso com os direitos das populações vulnerabilizadas das favelas e periferias. Embora a enorme extensão territorial, a numerosa população vivendo nela, e a heterogeneidade presente mesmo entre seus bairros, ela raramente é considerada no debate público sobre a cidade. Menos frequente ainda é que sejam consideradas suas diferenças internas, a exemplo do que chamam “extrema Zona Oeste”, que compreende o eixo Paciência, Santa Cruz, Sepetiba – que apresenta singularidades no que diz respeito à qualidade das habitações, acesso a serviços básicos de saúde, educação, mobilidade urbana, entre outros.

A dignidade da vida vem sendo destruída pelo vírus, pelos tiros da polícia, pelo racismo estrutural, pela privatização dos serviços públicos, pela fome e pelo desemprego.

Para enfrentar tais desafios, e outros, é preciso fomentar espaços onde as favelas possam conversar, se encontrar, articular uma ação coletiva organizada capaz de pautar as questões estratégias paras as favelas. Algumas sugestões de nomes para esses encontros foram ventiladas como: Conferência Direito à Saúde e à Vida Digna nas Favelas; Encontro das Favelas pela Vida; Conferência Livre das Favelas Pela Vida; Conferência Livre das Favelas Pela Saúde e Vida Digna. Foi destacada a importância de se desenvolver um trabalho político capaz de criar espaços de articulação que aproximem os movimentos e que, a partir de uma agenda que vá das questões estruturais às mais específicas, se tracem estratégias concretas de organização das lutas de enfrentamento aos impactos da Covid-19 nas favelas.

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