Violência obstétrica no antigo lixão de Itaoca

Laura Torres, 26 anos, moradora de Jardim Catarina/São Gonçalo. É doula, ativista pelos direitos sexuais reprodutivos e atualmente é diretora do projeto social Espaço Gaia e vice secretária da Associação Doulas Solidárias.
Imagem: Acervo Movimento Mulheres Vivas Zona Oeste

Estamos inseridos em uma sociedade machista e patriarcal, que violenta os corpos das mulheres de todas as formas possíveis, seja pensando em relações abusivas, seja no momento do parto, pois o lugar que a mesma acontece muda, mas a violência continua a mesma. De acordo com a pesquisa “Nascer no Brasil” coordenada pela Fiocruz, mulheres negras somam cerca de 62% das mortes maternas e sofrem cerca da 66% das violências obstétricas, do físico ao psicológico. São Gonçalo é uma cidade composta majoritariamente, por pessoas pardas e pretas, o que explica os altos índices de violência obstétrica dentro do nosso território além da forma racializada do atendimento dentro dos espaços de saúde.

De acordo com um levantamento feito pela Frente Parlamentar de Violência Obstétrica do Estado do Rio de Janeiro, de janeiro a julho de 2022, foram constatados cerca de 50 óbitos neonatais no Município de São Gonçalo. Uma pesquisa realizada pelo projeto social Espaço Gaia mostrou que pelo menos 80% das mulheres que tiveram seus bebês na maternidade do município sofreram algum tipo de violência obstétrica durante o atendimento, seja a negação do direito de ter um acompanhante de sua escolha, o que é garantido pela lei federal n°11.108/2005, seja violências físicas diversas como a manobra de kristeller (que consiste em uma pressão no fundo uterino) ou a episiotomia (corte no períneo, considerado desde 1999 como mutilação genital).

Pensando nesses números e em formas de auxiliar essas famílias, em agosto de 2022, o Espaço Gaia, em parceria com o Projeto Lilás, lançaram a sua primeira cartilha, que aborda temas como “dignidade menstrual, violência doméstica e obstétrica”, entendendo que os três temas têm um lugar em comum: a violação e a violência contra os corpos com útero.

O lançamento da cartilha foi realizado dentro do centro cultural da cidade e contou com duas mesas, nas quais estiveram presentes representantes políticos do campo progressista, além da sociedade civil organizada e de outras mulheres que trabalham com a temática dentro de seus territórios.

Foi através dessa pesquisa e de um encontro com Maiara Aparecida (24 anos), moradora do antigo lixão de Itaoca, localizado no Complexo do Salgueiro, que eu, Laura Torres, diretora geral do Espaço Gaia, desenvolvi um projeto com gestantes e puérperas dentro da localidade.

Itaoca é um local de muitas ausências, por mais que tenham projetos sociais que façam ações lá, tudo acontece muito pontualmente e nada trabalhando o desenvolvimento e a autonomia dessas pessoas, com um olhar para um público específico e uma mudança real e palpável. Como doula e ativista pelos direitos sexuais e reprodutivos, eu queria levar informação e mudar um pouco a realidade das mulheres que moram lá, pois sei que se a informação não chega aqui fora, imagina em um lugar que não tem nem ônibus.

As rodas de conversa com gestantes e puérperas acontecem desde meados de 2022, a fim de informar sobre os tipos de violências obstétricas, seus direitos e formas de denúncia caso aconteça algo em seu parto. Após um encontro com a moradora Maiara Aparecida, a mesma relatou como foram os seus três partos anteriores, e nessa conversa, foram identificadas as violências sofridas, inclusive, contando que tentou suicídio quando soube da nova gestação, com medo de passar pelas mesmas situações novamente.

“Através das rodas, nesse quarto parto, quando eu fui ter a Kimberly, eles me reconheceram pela cartilha, e eu não sofri nenhuma violência obstétrica, me trataram como tem que me tratar e falaram bem dela (Laura) e da Paola dentro do hospital”, conta Maiara Aparecida na festa de encerramento do segundo ciclo de gestantes do projeto.

Apesar da maternidade do município se dizer humanizada, pois conta com uma sala que tem bola, banqueta e itens para fazer carimbo de placenta, a humanização não é uma via de nascimento ou um tipo de parto, e sim, uma forma de assistência que deve acontecer com todas as pessoas, respeitando o protagonismo e as decisões de quem está gestando.. E encerra, dizendo que é preciso pensar em formas de assegurar às nossas mulheres e crianças, não só do nosso território, mas de todos os outros, os direitos de um parto sem traumas e seguro.

Imagem: Bianca Lorena Aguete Sepulveda

Por mais que as ações com as rodas aconteçam de forma direcionada dentro do antigo lixão de Itaoca, elas evidenciam a importância de levantar essa pauta dentro do município, fazendo com que esse assunto seja debatido, inclusive, dentro da câmara de vereadores, com o objetivo de criar um projeto de lei que possa considerar a violência obstétrica um mal que assola a cidade de São Gonçalo, sendo um exemplo para a sociedade em geral.

Esta gostando do conteúdo? Compartilhe

Veja Também